Arquivo da categoria: Guerra

BASTARDOS INGLÓRIOS

No capítulo IX de “A Arte Poética” existe um preceito aristotélico básico afirmando que o historiador e o ficcionista diferem entre si apenas porque um escreveu o que aconteceu, e o outro, o que poderia ter acontecido. Ao introduzir “Bastardos Inglórios” com a frase “Era uma vez numa França ocupada pelos nazistas…”, Quentin Tarantino deixa claro que seu compromisso não é com a realidade histórica, mas sim com a ficção, neste caso, com a tradição de um gênero cinematográfico específico, o dos “filmes de guerra”. Portanto, a 2° Guerra Mundial vista pelos olhos de Tarantino, não é aquela dos livros de história, mas sim outra guerra, retratada antes pelas lentes de Robert Aldrich, Samuel Fuller, Sam Peckinpah, Enzo G. Castellari, Brian G. Hutton, e tantos outros diretores que abordaram, cada um a sua maneira, as insanidades de um conflito mundial.

Nesta incursão por um gênero tão saturado (onde tudo já foi historicamente visto e revisto), o cinema antropofágico praticado por Tarantino se alimenta da própria ficção para narrar uma intrínseca trama de guerra onde ações paralelas, motivadas pelo desejo de vingança, se movem de formas distintas e se cruzam num inevitável e sangrento embate. Assim como toda a obra do diretor, o filme é construído minuciosamente sob a ótica de um cinéfilo obsessivo que se aproveita de sua cultura cinematográfica para compor uma espécie de patchwork fílmico, que entre citações e homenagens gera um elemento novo, em que a originalidade está na recomposição imagética dos fatos, onde gêneros distintos como o western, a comédia e o drama se mesclam e se complementam. A trama une, feito uma comédia de erros, dois planos para assassinar Hitler. De um lado o grupo de violentos soldados judeus conhecidos como “Os Bastardos”, que liderados pelo Tenente Aldo Rane (Brad Pitt) se infiltram na França ocupada pelos nazistas com a intenção de explodir uma sessão de cinema em que Hitler estará presente, enquanto Shosanna Dreyfus (Mélanie Laurent), a proprietária do cinema, arquiteta sua própria vingança contra os oficiais que massacraram sua família.

A seqüência inicial revela o tom que permeará os 153 minutos do filme, seja na elaboração da mise-en-scène, ou nos longos diálogos, é notável a emulação do estilo de Sérgio Leone, algo que Tarantino já havia esboçado em “Kill Bill”, e este fetiche pelo diretor italiano se faz presente também na escolha da trilha sonora, composta por vários temas de Ennio Morricone, o compositor predileto de Leone. É inquestionável a influência de outros diretores na construção da trama, seja Robert Aldrich e seu “Os 12 Condenados”, uma obra seminal para qualquer filme de guerra, seja na violência estilizada de Sam Peckinpah e seu “A Cruz de Ferro” ou Enzo G. Castellari, de quem Tarantino se apropriou, além do título, do humor abusado, porém, a sombra de Leone paira feito a de um gigante, principalmente sobre os duelos verbais em que os conflitos são estendidos ao máximo, num crescente de tensão em que a violência rompe de forma catártica e por vezes inesperada. Os diálogos sempre foram considerados o ponto forte na obra do diretor, no entanto Tarantino atingiu a excelência no domínio da técnica. Invés de divagar aleatoriamente sobre cultura pop, aqui os diálogos funcionam objetivamente em prol da trama. Os interrogatórios promovidos pelo oficial nazista Hans Landa, interpretado com timing perfeito pelo alemão Christoph Waltz, são um exemplo deste domínio, em que uma conversa banal sobre um copo de leite desvia-se por labirintos que ao final revelam a vilania dos seus objetivos. Ainda que o clímax seja regido pela inevitabilidade da violência, que surge sem sutilezas, com direito a cabeças destroçadas e escalpos arrancados, os grandes impasses ocorrem no plano verbal.

“Bastardos Inglórios” vai além de uma simples trama de vingança, sendo acima de tudo uma declaração de amor ao cinema, e uma afirmação do poder da ficção. E se não reinventa a roda, inegavelmente a faz girar fora do eixo de forma surpreendente. Ao reescrever a história com seu desfecho inusitado e violento, Tarantino nos lembra de outra premissa básica, esta pronunciada por Fassbinder, “cinema é mentira a 24 quadros por segundo”.

2 Comentários

Arquivado em Guerra