Foto do Cartaz: Priscila Poletti e Diego Bertoldi
Arte final: Marcelo Lim
Arquivo da categoria: martial arts
HANZO THE RAZOR: SWORD OF JUSTICE
Um dos mais notórios tough guys do cinema japonês, Shintarô Katsu marcou presença em dezenas de produções conhecidas como chambara, um subgênero dos filmes de samurais oriundo do jidaigeki, focado mais na ação e na violência do que na análise dramática do período histórico. Freqüentemente lembrado por sua caracterização do lendário samurai cego Zatoichi, tanto no cinema como numa longeva série de TV, Katsu produziu entre 1972 e 1974 três filmes com o personagem Hanzo, uma espécie de Dirty Harry do Japão feudal.
Idealizado e produzido pelo próprio Katsu, Hanzo the Razor: Sword of Justice, é o primeiro filme de uma trilogia sobre o incorruptível Hanzo Itami, um oficial de polícia do Período Edo com métodos pouco ortodoxos no combate ao crime. Devido ao seu temperamento hostil Hanzo vive em conflito com seus superiores, desrespeitando ordens e fazendo uso de leis próprias, o que o torna uma figura controversa entre os colegas e temida entre os marginais. Ao receber a informação de que um perigoso assassino conseguiu fugir da prisão e está refugiado em seu território, o determinado policial inicia uma investigação para descobrir a identidade do criminoso, esbarrando numa complexa rede de corrupção que revela o envolvimento de autoridades importantes com universo do crime local. Porém, fiel ao seu próprio código de honra, ele decide enfrentar as conseqüências e levar a sua missão até o fim.
Além de cometer violentas execuções sumárias, Hanzo é adepto de estranhos comportamentos sadomasoquistas, se auto-flagelando como forma de disciplinar seu corpo caso venha a ser torturado pelos inimigos. Numa seqüência emblemática ele obriga seus auxiliares a lhe torturarem numa angustiante sessão de flagelos, da qual sai ileso, e com uma monstruosa ereção. “Ele parece gostar de se erguer com a dor”, diz Hanzo tranquilamente sem reparar no espanto do incauto oficial que presencia a sessão de tortura. E é justamente o intenso teor erótico que fornece o tom exploitation ao filme, que explora sem sutileza a simbiose entre sexo e violência. Hanzo utiliza seus atributos sexuais apenas como uma forma de coação contra os inimigos, e a seqüência em que observamos a doutrinação de seu pênis para transformá-lo numa ferramenta de tortura sexual, método que utiliza para extrair informações de mulheres envolvidas com criminosos, é dolorosamente absurda e cômica. Após espancar seu membro avidamente com um porrete, ele pratica o coito com um saco repleto de arroz. Uma demonstração grotesca de virilidade exacerbada.
O diretor Kenji Misumi, um especialista no gênero, ciente de estar realizando um produto de ação destinado ao consumo popular, pouco se preocupou com as implicações filosóficas envolvendo Eros e Tanatos, como fariam outros diretores japoneses desta época, como Nagisa Ôshima em O Império dos Sentidos (Ai No Korida, 1976), preferindo explorar apenas o intenso grafismo sexual das situações. A sexualidade agressiva de Hanzo, seu sadomasoquismo e misoginia latente, reforçam o caráter controverso e brutal do personagem, atributos impensáveis para composição de um herói de ação nos tempos atuais.
Ainda nos anos 1970 o diretor Kenj Misumi foi responsável por conduzir nas telas outro samurai mítico, Ogami Itto, na popular série Lobo Solitário (Kozure Ôkami). também produzida por Shintarô Katsu e estrelada por seu irmão Tomisaburô Wakayama. O sucesso de Hanzo the Razor: Sword of Justice gerou mais duas produções, Hanzo the Razor: The Snare (1973), e Hanzo the Razor: Who’s Got the Gold (1974).
Ao contrário dos samurais honrados que interpretou na ficção, Shintarô Katsu teve sua vida pessoal marcada por escândalos e conflitos com as autoridades, provocados por seu temperamento explosivo e pelo consumo abusivo de drogas, fato que o levou a prisão em três ocasiões. Katsu faleceu de câncer de garganta em 1997.
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THE RAID- REDEMPTION
Exibido no Festival do Rio em 2011 com o título “Batida Policial”, o filme indonésio “The Raid- Redemption” (Serbuan Maut, 2011), vem sendo recebido com entusiasmo pelos fãs do cinema de ação. Tal empolgação se justifica plenamente durante os 100 minutos em que o diretor Gareth Evans desenvolve uma trama onde a violência desenfreada é orquestrada com uma inventividade cruel, em que poucos instantes são dados para os personagens e o público recuperarem o fôlego.
No começo da década de 1990, oriundo de Hong Kong, o diretor John Woo, antes de ser cooptado por Hollywood, redefiniu o gênero com o balé de balas visto em obras como “The Killer”, “Fervura Máxima” e “Bala na Cabeça”, em 2003, o filme “Ong-Bak – Guerreiro Sagrado”, de Prachya Pinkaew, colocou em evidência o muay thai e o efusivo cinema de ação da Tailândia, encabeçado pelo artista marcial Tony Jaa, e agora chegou a vez da Indonésia com “The Raid- Redemption”, dar mais uma amostra de que o cinema americano, preso as formalidades burocráticas da indústria, a muito tempo perdeu a supremacia do gênero para as produções asiáticas.
As insanas produções de artes marciais asiáticas, desde os anos 1970 esbanjavam criatividade, apesar de lutarem também com a precariedade técnica, porém nas últimas décadas atingiram um alto nível de excelência em suas produções, tornando o seu cinema competitivo em qualidade com as produções norte americanas. A diferença é que enquanto um se preocupa em agradar a platéia adolescente (com produções diluídas para obter o selo PG 13), o outro faz filmes para um público de ação consciente de que além da estética cinematográfica, facas cortam, ossos quebram e a carne sangra.
A trama de “The Raid- Redemption” é tão simples quanto eficiente. Um batalhão de elite de Jacarta precisa invadir um prédio, situado num bairro barra pesada, para prender um chefe do narcotráfico. O problema é que o edifício é habitado por toda espécie de sociopata do submundo do crime, e a cada andar que avançam os policiais enfrentam um sangrento embate, mas não tarda para perceberem que estão encerrados numa armadilha mortal de 30 andares. Encurralados, os policiais combatem a horda de assassinos num desesperador jogo de sobrevivência, onde quando a munição termina, golpes de faca, machado, e até cadeiras, são utilizados para dizimar os adversários. O jovem oficial Rama (Iko Uwais), tem motivações pessoais para ter aceito a missão, e suas habilidades nas artes marciais serão necessárias para empilhar corpos no meio do caminho até chegar ao seu objetivo. A missão de captura, além de desastrosa aos poucos vai se revelando não tão nobre quanto pensavam, mas quando o sangue começa a jorrar, é tarde demais para recuar.
Iko Uwais é um exímio atleta também na vida real, sendo campeão nacional de Silat, tradicional arte marcial da Indonésia. Foi Uwais quem coreografou as impressionantes seqüências de luta, uma verdadeira dança da violência, em que é impossível não imaginar quantos dublês saíram do set de filmagem direto para o hospital. E o anúncio de uma clínica de traumatologia nos créditos finais só reforça essa idéia. As seqüências envolvendo armas brancas são coreografadas de forma impressionante, e mesmo com a edição ágil envolvendo os golpes rápidos, o espectador não é poupado dos detalhes mais sangrentos. As sequências onde Rama luta com diversos oponentes munidos com facões em um corredor apertado, ou a tensa tentativa de fuga onde um caminho entre os andares é desbravado à machadadas, são dolorosamente prazerosas de se assistir.
Gareth Evans é um diretor com apenas outro longa em seu currículo, “Merantau” (2009), também com o lutador Iko Uwais no elenco, porém o seu exercício de direção demonstra que apesar da evidente euforia de um jovem diretor, ele possuí um impressionante domínio na concepção dos planos, uma decupagem digna de um veterano de olhar apurado.
Histórias com homens encurralados, pressionados a se transformarem em bestas para sobreviver a qualquer custo não são novidade, mas devido a sua natureza complexa sempre podem render excelentes frutos, e não faltam bons exemplos, Sob o Domínio do Medo, Duro de Matar, Território Inimigo, Assalto a 13° DP. Assim “The Raid” se une a uma bela estirpe de filmes sob o signo da crueldade.
O fato é que está modesta produção da Indonésia chamou a atenção do mercado americano, tendo seus direitos de exibição adquiridos pela Sony/Columbia. O filme estreou nos E.U.A ocupando 700 salas de cinema , lucrando mais de dois milhões em 10 dias, algo notável para um filme de ação B asiático. Uma porrada certeira na cara dos grandes estúdios.
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O VÔO TORTO DO BESOURO
Ao contrário daquilo propagado na época de seu lançamento, principalmente pela sua estratégia de marketing, “Besouro” não foi a primeira produção nacional que se amparou na estrutura dos filmes de artes marciais para conceber a sua trama. Pode-se, no entanto, afirmar que “Besouro” é o produto tecnicamente mais bem acabado de um gênero que de forma esporádica dá sinal de vida no cinema brasileiro desde os anos 1970, quando a febre dos filmes de kung fu afetou boa parte da indústria cinematográfica mundial.
Basta um breve olhar no passado para resgatar algumas pérolas esquecidas do cinema brasileiro que se inspiraram na temática das artes marciais, como “O Judoca” (1973), filme baseado num personagem da extinta editora de quadrinhos Ebal, ou “Kung Fu Contra as Bonecas” (1975) de Adriano Stuart, onde Helena Ramos interpretava uma capoeirista que exterminava um bando de cangaceiros com o auxílio de um improvável mestre em kung fu; e até mesmo Os Trapalhões arriscaram alguns golpes mortais em “Robin Hood, o Trapalhão da Floresta” (1974). Nos anos 1990 o veterano diretor Fauzi Mansur produziu “A Gaiola da Morte”, uma impagável comédia involuntária estrelada pelo lutador de full contact Paulo Zorello, e em 2004 o diretor cearense Halder Gomes gerou de forma independente o filme de ação “Sunland Heat- No Calor da Terra do Sol”, em que os personagens se digladiavam utilizando os mais diferentes tipos de artes marciais. Apesar de precárias e de gosto duvidoso estas obras servem para deslegitimar o suposto pioneirismo de “Besouro”, mas está curiosidade cinemática não é um foco de análise justo, muito menos coerente, para desabonar o filme de João Daniel Tikhomiroff, diretor oriundo da publicidade que em sua estréia na direção de um longa-metragem comete erros e acertos em sua tentativa de adaptar para a realidade brasileira os preceitos básicos dos filmes de kung fu.
Existem qualidades em “Besouro”, afinal, aproximar o universo da capoeira ao dos filmes de ação orientais não deixa de ser uma excelente idéia, tanto mercadológica quanto cinemática, porém, ao levar para as telas a vida do lendário capoeirista baiano conhecido como Besouro, Tikhomiroff parece ter se inebriado tanto com os excelentes recursos técnicos a seu dispor que se esqueceu de elaborar uma trama consistente para amparar os vôos e motivações do personagem. O melhor exemplo do fascínio pela técnica sobrepondo-se a construção do roteiro está no prólogo, onde, amparada por uma fotografia rebuscada, a câmera simula o vôo de um besouro realizando planos ágeis e impressionantes, porém, antes disso o espectador é submetido a um irritante exercício de redundância onde uma cartela situa historicamente os fatos (alguns completamente irrelevantes para a trama) enquanto uma narração em off repete exatamente aquilo que o espectador lê; explicar de forma tão grosseira algo que pode ser subentendido ou traduzido pela força das imagens é um artifício ingênuo e desnecessário.
Ao optar por colocar a estética em primeiro plano, o diretor se esqueceu do elemento humano, e Aílton Carmo apesar de ser um excelente atleta, não desempenha a mesma elasticidade como ator, e o mesmo se aplica a boa parte do elenco, salvo por Irandhir Santos que compõe um excelente e perverso antagonista (e que confirmou seu talento em trabalhos posteriores), e pelo enigmático Exu, interpretado por Sérgio Laurentino. Em um filme de ação, se o herói não emociona ou inspira empatia, espera-se que este elemento seja complementado pelas cenas de combate, e aí reside outra decepção, pois se esperava mais deste quesito visto que importaram Hiuen Chiu Ku, famoso coreógrafo de lutas que trabalhou em filmes como “Kill Bill” e “O Tigre e o Dragão”, mas ao que parece ele apenas se limitou a utilizar os cabos para que Besouro voasse de um lado para outro e pouco se envolveu na elaboração das lutas, pois estas cometem o pecado de serem captadas em planos fechados, quando é sabido que são os planos abertos que valorizam as coreografias.
E apesar de o roteiro seguir a cartilha clássica dos filmes de kung fu, “jovem lutador treina suas habilidades para proteger seu povo da opressão e vingar a morte de seu mestre”, Tikhomiroff e a roteirista Patrícia Andrade parecem ter se levado à sério demais, ou seja, parecem envergonhados de assumirem o cinema de gênero, desperdiçando um tempo precioso desenvolvendo uma trama de cunho social didática e maniqueísta, que se revela tão rasa quanto o desinteressante triângulo amoroso envolvendo Besouro, Dinorá e seu amigo de infância Quero-Quero. Enfim, quando agraciado com seqüências de luta que justificam o excesso de efeitos, talvez o público esteja enfastiado demais com o embate social para qualquer espécie de catarse.
Mas e os méritos? Sim, eles existem, porém situam-se quase que exclusivamente nas possibilidades não aproveitadas de seu argumento e na parte técnica. “Besouro” comprova a possibilidade de se fazer um cinema de ação tupiniquim de qualidade, valorizando nossa cultura e nossos mitos, com fotografia, edição e efeitos que não fazem feio diante das centenas de produções enlatadas que chegam anualmente ao mercado brasileiro. “Besouro”, mesmo sendo uma obra irregular, e não ter gerado até agora frutos efetivos, foi uma semente necessária, e espero que com o tempo ela vingue para suscitar aquilo que nossas toscas produções do passado não conseguiram, uma vertente nacional dedicada exclusivamente ao gênero de ação, porém, sem vergonha de se assumir como tal.
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