I
Lúcifer, o Anjo Caído, o grande adversário do Criador e de sua criação, o
homem, é uma das figuras mais emblemáticas da cultura judaico-cristã. O anjo
que desafiou Deus, e foi banido do paraíso celeste por sua ousadia, travando
desde então uma batalha pela alma humana, tem sido uma metáfora milenar
para ilustrar e expiar os males que assombram a humanidade.
Com a ascensão do cristianismo, sincretismos religiosos e outras formas
de assimilação cultural acabaram gerando inúmeros nomes e formas para
designar as múltiplas facetas desta criatura mítica que representa o contra
peso da balança na eterna dualidade entre o bem e o mal. Lúcifer, Satanás,
Belzebu, Mefistófeles, Pazuzu, seja qual for a nomenclatura utilizada, é o termo
grego “daemon” (δαίμων), que origina a sua designação genérica mais comum,
Demônio. Da serpente que seduz Eva no Genesis, passando pelo dragão do
Apocalipse e das lendas medievais até a figura popular do homem com chifres
e cascos no lugar dos pés, esta entidade maléfica ultrapassa os limites do
contexto bíblico e dos delirantes sermões admoestatórios sobre os tormentos
do inferno, para fazer parte de uma mitologia universal, gerando uma fonte de
inspiração inesgotável para reflexões artísticas sobre a natureza humana.
O cinema em seus primórdios, assim como ocorreu com a pintura, a fotografia
e outras formas de arte, também foi considerado por muitos uma ferramenta
diabólica. Religiosos alertavam os fiéis sobre a ilusão demoníaca e a
permissividade moral da nova invenção, como lembra Jean-Claude Carrière
em seu ensaio “A Linguagem Secreta do Cinema”, espectadores muçulmanos
fechavam seus olhos diante da tela, pois “uma antiga e severa tradição proibia-
os de representar a forma e a face humanas, criações de Deus”. A imitação do
mundo era, portanto, obra do Demônio.
Pois o cinema parecia realmente uma ferramenta ideal para a ação do mítico
mestre da mentira e da ilusão, e não tardou para que ele desse as caras
na nova invenção, que assombrava e seduzia o público no final do século
XIX. O pioneiro cineasta francês Georges Méliès (1861-1938), foi um dos
precursores ao utilizar a figura do Demônio em suas produções. Diabos de
traços picarescos, herança das sátiras medievais, infestavam suas produções,
como Le Diable au Convent (1899), Le Cake Walk Infernal (1903) e Le
Chaudron Infernal (1903). Amparado por trucagens visuais nunca antes
vistas pelo público, Méliès, segundo Jean Tulard, “rompeu com o aborrecido
cinema-verdade de Lumière, criando o cinema-espetáculo”. Ao fornecer ao
público, demônios e maravilhas, além de uma fascinante viagem à lua, o
experimentalismo de Méliès auxiliou a conceber a linguagem cinematográfica
que hoje conhecemos.
Outros pioneiros do cinema se aventuraram na exploração de figuras
diabólicas, como o americano D.W. Griffith, com The Devil (EUA, 1908), e os
italianos Francesco Bertolini e Adolfo Padovan, que em 1911, inspirando-se
esteticamente nas ilustrações de Gustav Doré, realizaram L’Inferno (Itália,
1911), uma impressionante adaptação da primeira parte da obra A Divina
Comédia, de Dante Alighieri. Imortalizado na obra Goethe, o mito de Fausto,
homem que em busca de juventude e conhecimento vende sua alma para o
demônio Mefistófeles, foi levado às telas pela primeira vez em 1904, num curta-
metragem do francês Georges Fagot, mas sua representação mais marcante
encontra-se em uma obra crepuscular do expressionismo alemão, Fausto
(Faust – Eine deutsche Volkssage, 1926), de F.W. Murnau. Porém, entre
as obras seminais no tratamento do tema, talvez seja Häxan, A Feitiçaria
Através dos Tempos (Häxan, 1922), de Benjamin Christensen, a que
melhor sobreviveu à evolução da narrativa cinematográfica, apresentando um
pesadelo de beleza lúgubre, que emula visualmente a obra do pintor holandês
Hieronymus Bosch, num universo repleto de demônios, bruxas medievais e
freiras possuídas, numa trama que mescla a ficção e o documental, explorando
teorias tanto místicas como racionais para relatar a influência de entidades
maléficas em nosso mundo. Em Häxan, religiosidade, medos e superstições
medievais se confrontam com as teorias psicanalíticas em voga na época.
Em seus primeiros anos, a abordagem do Diabo no cinema bebeu diretamente
da fonte literária (Goethe, Dante), nas lendas medievais e nos conceitos
bíblicos. Seres demoníacos, munidos de rabo e chifres, pululavam nas telas
fazendo caretas, seduzindo mulheres incautas ou barganhando a alma de
homens gananciosos, e mesmo que sua essência fosse claramente maléfica
para a audiência da época, vistas hoje, essas criaturas burlescas soam
ingênuas, gerando mais risos do que temor. Curiosamente, a figura mais
representativa daquilo que seria a “encarnação do mais puro mal”, pouco foi
explorada nos primórdios de um gênero que tem por natureza o objetivo de
assustar as pessoas, o cinema de horror.
II
Durante os anos 1930 e 1940, os estúdios da Universal
auxiliaram a popularizar o gênero, apavorando o público com títulos
marcantes como Drácula (1931), de Todd Browning, Frankenstein (1931), de
James Whale, e A Múmia (1932), de Karl Freund, mas durante este período
foram raras, ou nulas, as incursões do Demônio como protagonista, salvo
eventuais presenças em produções bíblicas.
Em 1957, Jacques Tourneur, veterano diretor dedicado ao cinema fantástico,
que nos anos 1940 havia realizado as obras primas A Morta-Viva (I Walked
With a Zombie) e Sangue de Pantera (Cat People), realizou o tétrico
A Noite do Demônio (Night of The Demon), onde um homem buscava
desesperadamente livrar-se de uma maldição que o levaria, literalmente, para
o fogo do inferno. Tourneur sempre prezou pela sutileza, preferindo a sugestão
ao susto fácil, e brigou inutilmente com os produtores para que a figura do
Demônio fosse apenas sugestionada, mas sua única e flamejante aparição
foi suficiente para aterrorizar o público. Fã confesso da obra de Tourneur, em
2009 o diretor Sam Raimi inspirou-se em A Noite do Demônio para conceber
a trama de seu Arraste-me Para o Inferno (Drag Me To Hell).
Os anos 1960 despontaram com novas possibilidades para a exploração de
um mito tão controverso. Movimentos de contracultura, influenciados pelo
esoterismo da Era de Aquário, abriram as portas para diversas espécies de
seitas, e o satanismo, revisitado através da obra do ocultista inglês Aleister
Crowley, ficou em voga entre os jovens, influenciando a música, a literatura, e o
cinema.
Neste período conturbado, repleto de experimentações, enquanto os Rolling
Stones cantavam Sympathy for the Devil, a própria indústria do cinema
passava por um processo radical de transformação, e o Demônio começava
a figurar em diversas produções cinematográficas, e assim surgem obras
ousadas e pouco convencionais como Invocation of My Demon Brother
(1969), de Kenneth Anger (seguida de Lucifer Rising, 1972) uma produção
avant-garde, onde o polêmico fundador da Igreja de Satã, Anton LaVey
representava o próprio Senhor das Trevas, e
Stevens, um filme peculiar, de soturna fotografia expressionista, onde numa
terra indefinida um humano (William Shatner) e uma Sucubus (espécie de
demônio feminino), se apaixonavam. Um amor que colocava a alma imortal
do homem em jogo, disputada por outro demônio, o Incubus do título, que
nascia das entranhas da terra e assumia a forma de um grande bode negro,
uma das representações clássicas do Baphomet medieval. Para aumentar sua
estranheza, a produção é totalmente falada em esperanto, e fatos sinistros
contribuíram para aumentar sua fama de filme maldito. Não bastasse o fato
de o interprete de Incubus, o ator Milos Milos, assassinar a amante e cometer
suicídio logo após as filmagens, na noite de estréia o cinema onde o filme
seria exibido pegou fogo, e algum tempo depois os copiões desapareceram,
tornando o filme inacessível durante mais de trinta anos, até que uma cópia em
bom estado fosse encontrada na Cinemateca Francesa.
Ainda no começo da década o diretor polonês Jerzy Kawalerowicz abordou o
histerismo religioso em Madre Joana dos Anjos (Matka Joanna od aniolów ,
1961), resgatando a história a respeito de freiras alegadamente possuídas,
abordada anteriormente no clássico Häxan. O tema seria revisitado pelo inglês
Ken Russell em 1971 com o polêmico Os Demônios (The Devils), tornando-se
a base para um subgênero conhecido como nunsesploitation. Estas obras se
baseavam num fato em comum, o notório caso das Freiras de Loudun, ocorrido
na França em 1632, quando religiosas de um convento cometeram sacrilégios
declarando estarem sob a influência de demônios. Até mesmo a tradicional
produtora inglesa Hammer, notória por seu ciclo de filmes sobre o Conde
Drácula, deixou o vampirismo um pouco de lado para produzir As Bodas de
Satã (The Devils’ Ride Out , 1968), e alguns anos depois retornou ao tema do
satanismo com Uma Filha Para o Demônio (To The Devil a Daughter, 1976),
onde uma jovem Nastassja Kinski era oferecida em tributo ao Diabo.
Em meio a dezenas de produções baratas de horror que se sucederam neste
período, é o diretor Roman Polanki e seu notório O Bebê de Rosemary
(Rosemary’s Baby, 1968), quem explora de forma mais contundente a essência
do mal. Os demônios deixavam de ser meras metáforas e carnavalizações,
para se tornarem seres tangíveis, assim como os seus simpáticos vizinhos
de apartamento. O impacto do filme só não foi maior do que o horror que se
estabeleceu fora das telas, quando em 1969 a esposa de Polanski, Sharon
Tate, grávida de oito meses, foi brutalmente assassinada junto com três
amigos, pelos membros da famigerada Família Manson, num dos crimes que
mais chocaram a sociedade norte-americana nos anos 1960. Em 1980, quando
John Lennon foi assassinado diante do edifício Dakota, local onde ocorreram
as filmagens de O Bebê de Rosemary, a aura negra da produção voltou a ficar
em evidência.
Porém, se o filme de Polanski abriu portas para o interesse dos grandes
estúdios sobre o tema, foi William Friedkin, em 1973, quem cimentou de
forma permanente a imagem do Demônio no cinema com O Exorcista
(The Exorcist). A história da possessão demoníaca de uma garotinha, que
blasfema contra Deus, comete automutilação, e se masturba com um crucifixo,
causou além de choque e pesadelos em platéias ao redor do mundo, uma
impressionante bilheteria e 10 indicações ao Oscar. Um feito memorável
para uma obra inserida numa linguagem tradicionalmente vista pela crítica
como um subgênero. Não demorou para que outros filmes inspirados em seu
sucesso comercial explorassem a mesma fonte, e até mesmo o plagiassem
descaradamente, como os italianos O Anticristo (L’anticristo, 1974) de
Alberto De Martino e Espírito Maligno (Chi Sei?, 1974), de Ovídeo G.
Assonitis. O cinema brasileiro também realizou algumas incursões no rastro
de O Exorcista, como Exorcismo Negro (1974), de José Mojica Marins, e
Seduzidas Pelo Demônio (1978), de Raffaele Rossi. Até mesmo o folclórico
cômico Mazzaropi satirizou a obra de Friedkin em O Jeca Contra o Capeta
(1976).
Com a figura do Demônio rendendo nas bilheterias, os grandes estúdios
continuavam investindo no tema, possibilitando que em 1976 Richard Donner,
amparado no Apocalipse de São João, concebesse A Profecia (The Omen),
outra obra emblemática para o gênero, que abordava o nascimento do
Anticristo; a materialização do mal na forma de uma criança, que ao crescer
tomaria o poder e iniciaria o declínio da humanidade.
Se nos primórdios do cinema o Diabo era apenas uma figura caricata, uma
metáfora ingênua e por vezes burlesca do conflito entre o bem e mal, as
obras de Polanski, Friedkin e Donner expandiram a presença das entidades
malignas para o universo físico, onde o campo de batalha deixava de ser
metaforicamente a alma humana, para afligir corporalmente crianças inocentes,
ou gerar um ser com intenções de exterminar com um golpe toda humanidade.
O horror passou a se originar na perversão da pureza infantil. Assim, as
crianças que antes representavam a esperança, passavam a idealizar um
futuro sombrio. O temor metafísico transforma-se no horror da destruição
em massa, refletindo temores racionais, como a paranóia de uma guerra
nuclear que atormentaria o mundo nos anos 1980. Um demônio possuindo um
presidente com o poder de iniciar a terceira guerra mundial, certamente era
mais aterrorizante que um diabo da Idade do Bronze atormentando freiras num
convento isolado do século XVII.
O Anjo expulso do Paraíso parece ser uma figura de potencial inesgotável para
espelhar os nossos temores, mesmo após figurar em centenas de produções
nestes mais de cem anos de cinema. Apesar de explorado desde o princípio
em todos os gêneros, passando pelas farsas de Méliès, e das comédias como
O Pequeno Diabo (Il piccolo diavolo, 1988), de Roberto Benigni,
existencialista de obras como Sob o Sol de Satan (Sous le soleil de Satan,
1987), de Maurice Pialat, a sua natureza grotesca e complexa o tornou figura
indissociável do cinema de horror, além de render desafios aos atores que o
interpretam. Nos anos 1980, Robert De Niro realizou uma marcante atuação
ao compor um refinado Louis Cyphre, em Coração Satânico (Angel Heart,
1987), de Alan Parker. Em 1997, em O Advogado do Diabo (The Devil’s
Advocate), de Taylor Hackford, o ator Al Pacino imprimiu em seu maléfico
personagem todo o sarcasmo e o cinismo dignos de um embusteiro infernal.
Porém, curiosamente coube a uma mulher, a andrógina atriz italiana Rosalinda
Celentano, a interpretação do Demônio mais enigmático e paradoxal dos
últimos anos, na polêmica produção de Mel Gibson, A Paixão de Cristo (The
Passion of The Christ). Ao ceder o papel para uma mulher, Gibson nos lembra
que o feminino também ostenta sua porção satânica, herança das lendas de
Eva, Lilith, e da força das deusas pagãs.
Em seu livro “Linguagem e Mito”, Ernst Cassirer afirmou que “cada impressão
que o homem recebe, cada desejo que nele se agita, cada esperança que o
atrai e cada perigo que o ameaça, pode vir a afetá-lo religiosamente”. Ainda
vivemos num mundo onde a sombra dos mitos pode desencadear medos
ancestrais, temores irracionais que tomam formas diversas e podem ser
compreendidos em suas manifestações artísticas. Parafraseando Cassirer
(embasado no significado original do termo grego daemon), se for para encarar
esses “demônios momentâneos que vem e vão, aparecendo e desaparecendo
como as próprias emoções subjetivas que os originam”, que seja através da
ficção de uma tela de cinema.
(artigo originalmente publicado no livro “Fim do Mundo:Guerras, Destruição e Apocalipse na História e no Cinema / Ed. Argonautas)